As Crônicas de Nada

14.5.06

- Então o senhor acha que todos devemos ter sempre um plano B.

- Claro. É um grande erro encarar uma possibilidade como algo único e insubstituível. Nem sempre as coisas acontecem como queremos, isso é meio óbvio, não? Devemos sim, ter nossos planos e metas bem definidos e direcionados. Mas e se algo der errado? Vou retornar à estaca zero por causa de um mero erro? Vou jogar tudo para o alto e então cruzar os braços? Não, meu amigo. Temos que analisar todas as possibilidades. Se o azul não funciona, use o verde. Se o verde não funcionou, tente o amarelo. Tá entendendo o que quero dizer? O rumo de nossas vidas, ao mesmo tempo em que está sob nosso controle, também não está. E isso nunca pode ser esquecido ou deixado de lado.

- É verdade, Capitão. Estou tranqüilo de ter alguém como o senhor liderando esta situação. Mas, se me permite dizer, nosso tempo é curto. A quantidade de água que está entrando pelo buraco é muito grande.

- Meu rapaz, você já ouviu aquele velho provérbio chinês que diz assim: "A pressa é inimiga da perfeição"?

- Já.

- Pois então.

23.3.06

A encomenda chegou na tarde de sexta-feira. Dois dias além do prazo previsto, mas naquele momento ele não dava a mínima pra tal fato. A ansiedade era tanta que nem percebeu ter fechado a porta na cara do carteiro.

- Tem que assinar, irmãozinho!

Abriu a porta, e com as mãos trêmulas, assinou o documento com certa dificuldade. Depois fechou novamente a porta na cara do carteiro, que não poderia ter usado expressões melhores para mostrar seu repúdio àquele tratamento.

Dirceu pôs a caixa em cima da mesa, sentou-se no sofá e ficou ali, olhando fixamente para ela. Apoiou os cotovelos nas pernas, o queixo nas mãos e depois disso não moveu mais um músculo, por um bom tempo. Quase uma hora, pra ser mais exato. Apenas contemplava aquela caixa, cujo conteúdo havia lhe custado um divórcio, uma alta soma de dinheiro e olhares de repulsa do seu irmão mais velho.

- Se mamãe estivesse viva, ela teria morrido de novo depois dessa.
- Estou com a consciência tranqüila, é isso que vale.

Depois de muita reflexão, resolveu abrir a caixa. Retirou os grampos e isopores com extrema cautela, como se fosse um neurocirurgião operando o Presidente da República. “Nossa, é muito mais bonito do que imaginei!”, pensou alto. Depois espanou a poeira, com um sorriso que ia de um canto a outro da boca. Ligou na tomada, respirou fundo e apertou o botão POWER.

Pena que Dirceu não tinha o costume de ler manuais. Do contrário, saberia que a tomada devia ser de 220 volts.

19.3.06

Ao revelar as fotos que tirara, levou um susto. Um monstro? Um desastre da genética? Um alienígena? Comunista? Um monte de lixo? Ao notar que se tratava de um homem em pleno processo de derretimento, ficou chocado! Mas seu lado mercenário foi mais forte que o humano e logo pôs-se atrás da aberração para, ao menos, tirar mais uma foto e algumas vantagens da criatura. “A essa altura ele já deve ser um quarto de homem”, pensou. Correu atrás de pistas que pudessem levá-lo a ele e pôde perceber que “aquilo” já deixara seu rastro de pânico, terror e vísceras. Soube por diversos depoimentos que a massa disforme relatava o acontecido a qualquer um que passasse, e discorria sobre a sua “sorte”. Era um astronauta que havia retornado de uma viagem experimental a Saturno e seus anéis. A partir do momento em que foi posto em quarentena na NASA, começou a derreter. Fácil imaginar como ele escapou de lá. Ele só ameaçou cuspir em quem tentasse impedi-lo de sair. O astronauta, instintivamente, rastejou por caminhos alheios à sua memória. Claro, seu cérebro já não era o mesmo! Talvez esse fato unido a uma perturbação psicológica decorrente da desintegração – lembrou-se dos extraterrestres dizimados por raios de pistola laser nos desenhos do Pernalonga – fizeram com que pensasse em se vingar da raça humana (por tê-lo incentivado a viajar) jogando-lhe nas costas, ou onde grudar, o peso de ele agora ser um oitavo de um homem.

Passou por entre lavradores a trabalhar nos campos de trigo. Incrivelmente conseguiu escapar, escamoteando-se das foices e enxadas que se puseram atrás dele. Decidiu então atacar criancinhas. Eram mais inofensivas. Em vez de se assustarem e fugirem em pânico, roubaram-lhe um pedaço para moldarem bichinhos. Confundi-lo com argila foi demais! Em torpor, dirigiu-se ao centro da cidade. Acabaria de vez com aquela história e tornar-se-ia um dezesseis avos de um herói. Seria perfeito!

Um casal de velhinhos foi a vítima. Sentados num banco da praça conversavam os dois sobre os avanços da tecnologia nos últimos anos. Um “BÚ” quase inaudível desviou suas atenções e calmamente perguntaram ao ex-tudo a que tipo de experiência ele fazia parte. Foi a gota d’água! Indignado com aquela reação “avançadinha”, começou a chorar, e contou de sua vida anterior à viagem, seus sonhos e ambições. Tudo destruído em uma questão de dias! O que seria daquele um trinta e dois avos de gente? Penalizados, os velhinhos resolveram levá-lo para casa e dar-lhe a atenção merecida, pelo menos até que ele se desintegrasse de vez. Não deu nem pra atravessar a rua. Quando desceu, ou melhor, despencou da calçada, juntou-se à água turva que descia pelo esgoto e sumiu por entre as grades. Ainda puderam ouvir, o casal de velhinhos e o fotógrafo – que finalmente chegara, mesmo atrasado – as últimas palavras do infeliz:

- Tchau, um beeeeij...

17.3.06

Sentado em uma cadeira com um rasgo no meio do assento, ouvia aquela senhora dar seu parecer.

- Pois bem, quero que me traga cópias de sua carteira de identidade, CPF, comprovante de residência, declaração de matrícula, grade curricular, duas fotos 3x4, número da conta no banco, cadastro no CIEE, tipagem sangüínea...
- Tipagem sangüínea?
- Sim.

Devo ser considerado um palerma por achar que determinar meu tipo sangüíneo não é essencial para se conseguir um estágio em uma empresa? Pois é isso que acho. A não ser que meu futuro chefe seja um vampiro com dieta alimentar restrita.

- O novo candidato ao estágio tem sangue O positivo. Devemos aceitá-lo?
- Xi, melhor não. Me dá queimação no estômago. Chame aquele do sangue AB.
- Sim, senhor.

Após aquela senhora dos Recursos Humanos terminar a leitura da relação de documentos necessários, ela me acordou e então fui embora. Não estava me sentindo confortável com a idéia de receber uma seringa na minha veia. Ainda mais de ter que fazer isso para conseguir um mero estágio. O que vão pedir quando eu for fazer o exame de sangue?

- Resultado do teste para motorista? Pra fazer um exame de sangue? Por quê, meu Deus do Céu?
- Precisamos saber se o senhor dirige bem, e não vai sair por aí desperdiçando seu sangue em acidentes de trânsito.

Na atual situação, nem duvidaria disso. Mas no laboratório médico, pelo visto as coisas ainda funcionavam com uma certa normalidade. Sentei-me na frente de outra velha senhora, que enfiava uma lança na minha magra veia enquanto fazia piadinhas de gosto duvidoso, do tipo "Doeu? Mas eu nem senti!". Coisas como essa me fazem ter certeza que uma úlcera me espera no futuro.

Não é uma visão muito agradável ver seu líquido vermelho e precioso, essencial à sua vida, escoar para dentro de uma seringa. Precisava tirar tudo aquilo? Mais algumas gotas e eu ficaria anêmico. A velha ria. Falei que precisaria do resultado com certa urgência, e ela riu mais um pouco. Tem gente que acha que nunca vai ser agredida fisicamente. Cuidado, minha tia. Aliás, notei uma coisa engraçada nela. Gosta de repetir o que as pessoas falam.

- Preciso desse resultado para sexta-feira. Pode ser? - perguntei à assistente.
- Dá sim. O exame é rápido.
- Ele quer o resultado para sexta-feira. - repetiu a velha para a assistente, que fez uma ligeira cara de cu. Coitada, devia realmente precisar daquele emprego.

Pretendo tirar meu passaporte no final do ano. Espero que não me peçam uma carteirinha do Clube do Monza.